‘Acordo um velhinho de 230 anos e 5 minutos depois sou um garoto de 12 anos’, diz João Carlos Martins sobre volta ao piano

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Quando tinha 15 anos e já começava uma carreira como pianista, João Carlos Martins tinha a impressão de que a vida de um músico era glamorosa. “De repente eu percebi que exige sacrifícios. E que você pode ter uma vida normal, mas ao mesmo tempo você é um missionário”, diz ele. “E no momento em que você é um missionário, você tem uma missão a cumprir na vida.”

Os sacrifícios foram muitos. Mas nenhum, nem os acidentes e problemas nas mãos, nem as 24 cirurgias a que foi submetido, o impediram de cumprir sua missão. Hoje, depois de mais de duas décadas sem tocar com os dez dedos, o determinado pianista e maestro João Carlos Martins voltou a fazê-lo com a ajuda de luvas “biônicas”.

“Quantas manhãs eu acordo e falo: ‘sei lá se vai ser possível’. Acordo como um velhinho de 230 e, cinco minutos depois, sou um garoto de 12 anos. E assim eu levo a vida, sempre acreditando na esperança de que você pode alcançar seu objetivo”, diz o maestro de 80 anos de seu apartamento em São Paulo, por Zoom, à BBC News Brasil.

O retorno ao piano exige esforço e dedicação. Por isso, a quarentena do maestro na pandemia de coronavírus tem sido uma de “reaprendizagem” do instrumento, agora tocando com as luvas feitas por um designer industrial. “Toda manhã, os primeiros exercícios…”, diz ele, de frente para o piano, posicionando os dedos sobre as teclas.

Vídeos compartilhados por ele nas redes sociais mostram sua emoção de tocar piano com os dez dedos novamente. Em um deles, publicado há três semanas, o maestro toca, com as luvas, uma peça do compositor Johann Sebastian Bach (1685-1750), de quem é um dos maiores intérpretes no mundo.

João Carlos Martins está em lágrimas, e bastante envolvido com a música. A comoção se espalhou: em seu perfil, o vídeo foi visualizado por quase 300 mil pessoas. A atriz americana ganhadora do Oscar Viola Davis também compartilhou o vídeo, e 270 mil pessoas o viram ali, comentando como era uma inspiração vê-lo tocar. A atriz Charlize Theron, por exemplo, comentou: “Moved to tears” (“Lágrimas de emoção”). Diversos meios de comunicação, do Brasil, Estados Unidos e Índia, por exemplo, publicaram o vídeo, chamando a atenção para a emoção do maestro e para as luvas que lhe devolveram a habilidade de tocar com todos os dedos.

“Minha carreira teve vales profundos e altas montanhas. Eu sempre digo: quando você tem um vale profundo, você precisa ter determinação. E não saltar para um abismo. E quando você pode ver uma perspectiva de uma adversidade, você em vez de saltar para um abismo, você constrói uma plataforma e voa mais alto”, diz ele.

Na entrevista, Martins demonstra o funcionamento das novas luvas, tocando o piano em breves concertos via Zoom.

‘Vida dos sonhos’

Quando João Carlos Martins tinha oito anos, seu pai lhe comprou um piano. “Seis meses depois, eu ganhei um concurso nacional de piano tocando obras de Johann Sebastian Bach. Parecia que eu levava jeito”, diz. “Aos treze, iniciei a carreira nacional e, aos dezoito, a carreira internacional. Parecia a vida dos sonhos.”

Naquela época, ele já sofria de distonia focal, um distúrbio que afeta os músculos e causa flexões involuntárias. Se um músico tem distonia focal, é provável que suas mãos não respondam como ele gostaria quando tenta tocar um instrumento.

A distonia, diz o pianista, ia aparecendo durante o dia. Por isso, desenvolveu uma estratégia: entrar no palco “como se fosse 7h”. Então, ele dava um jeito de dormir quatro horas antes de cada concerto. “Depois, eu dava o concerto em plena forma.”

Aos 26 anos, diz ele, começou o que o maestro define como sua “tragédia das 24 operações”. “Eu já tinha tocado com as principais orquestras do mundo, tocando em todos os continentes, levando o nome do Brasil. Mas aí eu tive um acidente jogando futebol.”

Foi no Central Park, em Nova York. Uma queda afetou o nervo ulnar, responsável pela sensibilidade e movimento de parte da mão e do antebraço. “Um mês depois eu já estava com atrofia nos últimos dedos”, diz ele. “Fui operado no NY University Hospital, em Nova York, e consegui solução paliativa. Com dedeiras de aço, toquei por mais dois anos. Em alguns concertos, eu acabava e tinha sangue nas teclas porque o esforço era grande.”

Período nos ringues e muitas perdas

Aos 30 anos, no entanto, sentindo que não podia mais tocar da mesma forma, João Carlos Martins abandonou a música e a carreira. E mudou de vida completamente: virou empresário de boxe.

“Eu nem podia ouvir falar de música, tal a minha revolta comigo mesmo de ter tido uma lesão por causa de um jogo de futebol. A revolta era enorme.”

Foi empresário de Éder Jofre, bicampeão mundial de boxe. Ele foi uma inspiração para Martins. “Quando eu vi o juiz levantar a mão dele novamente, o que me passou pela cabeça? ‘Esse homem reconquistou o título mundial para o Brasil, então quem diz que eu não posso voltar a tocar piano?’ Aquilo me ajudou”, diz.

Em 1978, fez sua reestreia em um concerto esgotado em Carnegie Hall, em Nova York. “Quando acabou o concerto, eu chorava muito de emoção.”

Mas, por praticar cerca de dez, doze horas por dia, o pianista teve LER (lesão por esforço repetitivo). “E tive que interromper uma segunda vez. Com fisioterapias e cirurgias, consegui voltar novamente. Acabei a gravação da obra de Bach e, finalmente, parecia a vida dos sonhos.”

Então, um assalto na Bulgária em que é ferido resulta em uma lesão cerebral. Martins faz mais oito meses de tratamento para se recuperar.

Em 1998, depois de uma série de problemas e acidentes que afetaram sua habilidade de tocar piano, fez o último concerto com as duas mãos em Londres. “Depois desse concerto, dois dias depois, eu já fiz 24 operações, me cortaram os nervos da mão direita. E eu perdi a mão direita. Eu só podia usar o indicador e o polegar. E com a esquerda eu fiz ainda uma carreira, toquei na França, na China, em vários lugares.”

Então, o pianista segue sua carreira só com a mão esquerda. Até que a distonia volta a afetar demais essa mão, afetada também por um tumor. “Mais cirurgias, e finalmente os médicos falaram que nunca mais eu poderia tocar piano profissionalmente.”

“Foi no ano de 2002: meu último concerto foi em Pequim, eu estava tocando só com a mão esquerda, mas com dores incríveis. E aí fui para Nova York e os médicos falaram que a distonia era tão severa que eles tinham uma péssima notícia para mim … que eu nunca mais poderia tocar piano profissionalmente, nem com a mão esquerda sequer. Então, parecia que o mundo tinha caído para mim durante 24 horas. Naquele dia, eu me lembro de caminhar 10 km pensando o que que eu ia fazer, aos 63 anos de idade”, diz. “Parecia que o mundo tinha caído para mim durante 24 horas.”

Dois dias depois, conta ele, o pianista apareceu na porta de uma faculdade para fazer aulas de regência. “Comecei uma nova carreira, sem nunca abandonar meu velho companheiro [o piano], com dois polegares.”

João Carlos Martins fundou a Bachiana Orquestra e regeu centenas de concertos, tornando-se, também, um respeitado maestro. Ainda tocava piano ocasionalmente, só com os dois polegares.

No ano passado, no entanto, por causa da dor que sentia nas mãos, decidiu fazer uma cirurgia que o impossibilitaria de vez de tocar o piano, inclusive com os polegares, como ainda fazia em alguns concertos. Mas um espectador mudou esse destino.

Um estranho com uma solução

De sua casa em Sumaré, no interior de São Paulo, Ubiratan Bizarro Costa, o Bira, estava vendo na TV o que seria definitivamente o último concerto de João Carlos Martins com os dedos que ainda conseguia controlar.

Bira é designer industrial, tem um escritório de design e uma escola de desenho e, como ele mesmo diz, gosta de “inventar coisas” e fazer “produtos malucos”.

Quando viu que o pianista teria de se aposentar do piano para sempre, pensou que talvez pudesse inventar algum equipamento que lhe ajudasse. “Aquilo ficou na minha cabeça, e no dia seguinte comecei a fazer.”

“Eu comecei a gravar os vídeos dele tocando, tirando as imagens, tirando as medidas pela mão dele”, conta. Assim, fez um primeiro protótipo, uma luva extensora.

Mas não conseguiu entrar em contato com o maestro, e a luva ficou guardada, sem uso, em uma prateleira. “Até que um dia eu vejo que ele ia reger aqui na minha cidade, em Sumaré.” Era a sua chance.

Conseguiu ser recebido no camarim. “Ele me recebeu muito bem”, diz Bira. E o designer industrial lhe deu uma caixa com as luvas, tentando explicar como funcionava.

As luvas não ajudaram. Bira não sabia que Martins conseguia abrir a mão, e o primeiro protótipo eram quase como que dedos extensores. O maestro admite que no começo não acreditava que o designer conseguiria ajudá-lo. Mas lhe telefonou, convidando Bira para um almoço em sua casa para ver como suas mãos funcionavam.

Os dedos do maestro conseguiam apertar as teclas do piano, mas o problema é que não voltavam para a posição original, impedindo que ele tocasse o instrumento. “Na verdade, ele abria a mão, eu não sabia disso. Cada dedo tinha uma particularidade. E aí eu comecei a criar outras coisas, me baseando por cada dedo”, diz Bira.

Então, Bira criou luvas com hastes que funcionam quase como molas. “Quando ele aperta, a haste puxa para cima. É simples”, explica. “Ele fecha a mão e a luva puxa para fora. Essa é a função da luva extensora biônica.”

“Quando eu pensei em fazer, pensei em uma coisa simples só para ele tocar no fim de semana, na casa dele, não era para ele sair tocando. E eu nem imaginei que desse pra fazer tudo isso. E nossa, ele pegou aquilo e destrinchou a luva, ele fez o diabo ali, não tirava mais”, diz Bira, sorrindo.

“Eu lembro que eu chorei muito na hora que eu toquei [piano com as luvas]porque fazia 21 anos que eu não encostava os dez dedos no teclado”, diz Martins.

As luvas usadas agora pelo maestro estão em sua sexta versão e, porque Bira foi procurado por outras pessoas com problemas de mobilidade nos dedos, luvas parecidas à do maestro agora estão à venda (por encomenda; uma por R$ 549 e R$ 1.348 o par). Ele diz já ter vendido pelo menos 100 luvas.

Martins diz que as luvas agora quase fazem parte do seu corpo. “Quando estou sem as luvas, hoje me sinto inseguro até para andar na rua. Passou a fazer parte do meu físico”, diz ele. “As luvas me ajudaram a cuidar da alma.”

“Hoje, cada nota que eu toco no piano que eu toco, eu costumo colocar o coração para trazer emoção, o cérebro para ter o conceito da música, e alma para que alguma coisa diferente chegue no coração de quem está ouvindo”, diz Martins.

Para ele, é preciso “sempre” ter esperança, dando exemplos “de que tudo é possível nessa vida”.

Por ora, o maestro e pianista seguirá praticando o piano em casa. Até ano que vem, quando um fará um novo concerto no Carnegie Hall, marcado para 17 de outubro, diz ele, orgulhoso. Com os dez dedos e muita emoção, como foi da primeira vez.

Fonte: BBC Brasil

 

 

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