Alfabeto serve de guia para João Carlos Martins em livro biográfico

Google+ Pinterest LinkedIn Tumblr +

Vida do pianista e maestro João Carlos Martins é contada de A a Z em novo material

A vida do pianista e maestro João Carlos Martins, 79 anos, foi tema de filme, documentário, musical, livros e até de samba-enredo. Não à toa. Logo na infância, ele demonstrou talento para virar um grande pianista. E se tornou. Mesmo com todas as adversidades físicas que o fizeram parar e voltar algumas vezes a tocar o instrumento: lesões no nervo ulnar (após um acidente durante uma partida de fogo em Nova York), por esforço repetitivo (em razão aos excessivos treinamentos no piano), e no cérebro (depois de um assalto na Bulgária); e a distonia, doença degenerativa que afeta os movimentos do corpo. Quando teve que largar de vez a maior paixão, o piano, João Carlos poderia ter deixado a música de lado. Mas não o fez. Superou todos os problemas, mais uma vez. E, aos 64 anos, assumiu o desafio de se tornar maestro. A ideia veio de um sonho na madrugada e, na manhã seguinte, ele já estava assistindo a primeira aula.

Essa trajetória de quedas e levantes é o norte de João de A a Z, mais novo livro de João Carlos Martins lançado pela Editora Sextante. Mais do que contar o enredo que muita gente conhece pela relevância do artista na música brasileira, o maestro compartilha o que sabe fazer de melhor: contar histórias com muito bom humor. Em 208 páginas, ele faz um passeio pela própria narrativa, com o detalhismo que só ele mesmo poderia fazer, com base em uma palavra para cada letra do alfabeto, ao melhor estilo de um abecedário biográfico. Ele conta desde a infância até os dias de hoje, falando de religião, convivência e música, claro.

Inicialmente, João Carlos não tinha intenção de escrever um livro. “Já falaram tudo sobre mim. O que eu vou falar agora?”, se questionou quando surgiu o convite. A ideia de se inspirar nas letras do alfabeto para buscar palavras-chaves que pudessem ser o início para cada capítulo veio depois de uma reunião do maestro com Pascoal Soto, editor da Sextante, e o jornalista Vicente Vilardaga. “Gostei da ideia. Em cinco dias, peguei um livro, porque eu não sei mexer no computador, fui escolhendo as palavras e eu mesmo escrevi tudo”, conta e logo grita o nome da esposa Carmen Valio, com quem é casado há mais de 20 anos, para que busque o manuscrito, um caderno todo escrito a mão com uma caligrafia caprichada que, aos poucos, vai se transformando num garrancho. “Escrevi o manuscrito, que é uma letra horrível, porque eu não consigo escrever, ficava com a mão cansada, mas ficava o dia inteiro até acabar de escrever”, afirma.

Em apenas cinco dias, João Carlos Martins escreveu a primeira versão. Depois, em mais cinco dias, fez outra. “Escrevi inteirinho de novo e falei que estava pronto. Três dias depois, eu telefonava para dizer que não estava pronto. No quarto dia, falava que não estava pronto de novo. Eu sou metido a perfeccionista. Todo esse processo levou uns 15 dias, o que eu escrevi, reescrevi e falava que estava pronto e depois que não estava”, acrescenta, demonstrando que o perfeccionismo e detalhismo que sempre teve na música também foi transportado para o trabalho literário.

Desafio e legado

Sobre a escolha das histórias, o maestro diz que esse foi um dos maiores desafios. O que é imaginável para alguém que começou tão cedo na música, atingiu muito jovem altos patamares na carreira, e, por isso, rodou o mundo. “Foi aí que foi difícil. Porque, por exemplo, tem tantas histórias, que eu não pude contar. É história que não acaba mais”, comenta, entre risos. Apesar disso, uma coisa estava certa, João Carlos queria compartilhar a superação de tantas dificuldades com uma atmosfera otimista. “A coisa mais importante nesse livro é que só eu e Deus sabemos exatamente o que passa na minha cabeça sobre o fato de ter perdido as minhas mãos, porque eu sei exatamente como eu tocava piano. Eu vivo 18 horas por dias com esse incômodo, que, pra mim, é a pior coisa que se possa imaginar. Aguentei os últimos 17 anos com dor para poder tocar no final dos concertos músicas lentas”, defende.

Até por isso, o músico começa o livro falando exatamente sobre essa circunstância. Logo na introdução explica a motivação: “Aos 79 anos, não gostaria de ensinar ninguém, mas mostrar que a vida me ensinou a aproveitar para dividir emoções, pois só sabe multiplicar, aquele que aprende a dividir. Os últimos tempos têm sido desafiadores e estimulantes, pois a pior coisa que aconteceu em minha vida foi perder as mãos para o piano, e a melhor coisa que aconteceu em minha vida foi perder as mãos para o piano”.

Para João Carlos, o livro também é uma forma de apresentar as três fases da sua vida que passam pelos momentos como pianista e maestro até chegarem a parte do legado: “Acho que tudo que eu queria realizar, eu realizei. A parte como regente, foi de um sonho. Coloquei na cabeça “sei fazer música e vou fazer, tenho meus problemas neurológicos, então tenho que fazer música com o corpo, com tudo, o importante é a orquestra soar”. Agora, a terceira fase é de tentar deixar um legado”.

Questionado sobre a palavra favorita da obra, ele é categórico: esperança. “Essa noite eu estava sonhando que estava dando um concerto em Nova York, tocando como nunca toquei. Aí eu acordo e vejo que não sou mais pianista. Isso acontece até hoje. Aí, é realmente uma história de uma pessoa que perdeu tudo e acreditou na palavra esperança, por isso que eu a considero a mais importante do livro”.

*A repórter viajou a convite da Editora Sextante

» Ponto a ponto / João Carlos Martins

Histórias do livro

Não tem uma letra que não deva ter uma história engraçada da minha vida, foi o que pensei. Cada letra deve ter umas 10 e eu tive que escolher. Detesto a palavra autoajuda, mas compartilhamento eu adoro. Então é uma espécie de compartilhamento do que a vida me ensinou e do que aconteceu na minha vida com aquela letra.

Processo de escrita

Fui letra por letra. Já tinha escolhido as palavras. Eu tinha ganho esse livro e escrevi assim (a mão). Você imagina a dificuldade com a minha mão de escrever o livro inteirinho assim. Realmente fiquei como um doido. Eu quis fazer um livro com o coração. Até tentei fazer no computador, eu ditando e a Carmen digitando. Em 15 minutos parei. Finalmente consegui com esforço, quando acabava tinha que colocar o braço na água quente.

Piano

Quando eu vi esse prédio (o apartamento dele em Jardins, em São Paulo) há 50 anos, ia começar a construção. Comprei os últimos quatro apartamentos e disse que ia fazer do meu jeito. Eu quis fazer uma sala em homenagem a tudo que tenho na minha vida. Por isso que o teto tem a forma de um piano de calda. Minha vida eu devo ao piano.

Legado

Esse livro é uma luta desesperada pelos erros que cometi na vida e pelos acertos e de pegá-los para deixar um legado Esse legado que eu falo são esses projetos, como levar uma orquestra da Paraíba para tocar no Teatro Municipal de São Paulo. Eu trouxe 50 crianças para dar o concerto. Eles fizeram os primeiros 20 minutos, crianças de 7 a 11 anos que estão tocando espetacularmente bem. Foi a primeira vez que uma orquestra do Nordeste veio dar um concerto de música clássica em São Paulo. Elas fazem parte do Orquestrando Brasil. Agora vou começar um projeto em que vou botar as cordas nas percussões de Carlinhos Brown em Salvador e transformar em uma orquestra. Agora tem 10 cidades que eu escolhi para fazer um grupo de excelência mesmo, fora os 430 que a gente já tem pelo Brasil.

Orquestrando Brasil

O Orquestrando é o ponto final, porque é um trabalho que vai demorar anos. Eu levo o projeto a cidade de cinco mil habitantes, levando um concerto daquela orquestra para aquelas cidades do interior. Se no apagar das luzes, eu puder falar que graças ao meu trabalho e da minha equipe pudemos fechar o Brasil em forma de coração através da música, está bom.

Fonte: Correio Brasiliense

Compartilhe.

Deixe uma resposta