No centenário de morte de Alberto Nepomuceno, família e pesquisadores homenageiam legado do cearense

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Atividades em celebração à efeméride, no próximo dia 16 de outubro, terão início nesta segunda-feira (6), data que marca o nascimento do músico na cidade de Fortaleza, em 1864

Entre a rua Senador Pompeu e a avenida Alberto Nepomuceno, ambas situadas no Centro da Capital cearense, cabe contar uma história de mais de um século atrás. Para isso, voltemos ao dia 6 de julho de 1864, quando nasce, naquela rua, o filho de Maria Virgínia de Oliveira Paiva e de Victor Augusto Nepomuceno. A mãe da criança era irmã primogênita do escritor Manuel de Oliveira Paiva, autor do romance regionalista “Dona Guidinha do Poço”. Já o pai era violonista, professor, mestre de banda e organista da antiga Catedral de Fortaleza, cuja avenida da frente ganharia, anos mais tarde, o nome do pequeno que acabara de vir ao mundo.

Nos 56 anos que vieram após esse parto, formou-se um dos maiores compositores brasileiros, reconhecido como um fiel defensor do canto em língua pátria quando este assunto sequer tinha abertura no País: o cearense Alberto Nepomuceno.

Falecido em 16 de outubro de 1920, agora ele é lembrado por mais este centenário. A memória do artista é celebrada pelos descendentes, a exemplo do bisneto Carlos Augusto Alvim Correa, e também por uma comissão de músicos e pesquisadores, entre eles Elba Braga Ramalho, Gilmar de Carvalho, Inez Martins Gonçalves, Anna Maria Kieffer e Marcio Landi. Juntos e em parceria com o Porto Iracema das Artes, eles organizam uma vasta programação em homenagem ao maestro.

“Cresci respirando tudo isso, até porque meu pai, Sérgio Nepomuceno (neto do Nepomuceno), foi um grande pesquisador e divulgador da obra dele, além de crítico de música clássica e diretor da Orquestra Sinfônica Brasileira. Por conta disso, a  imersão no mundo de meu bisavô  era completa. Ouvi muitas histórias incríveis de sua vida e obra”, partilha Carlos Alvim, herdeiro do acervo do homenageado.

Em mais de dez caixas, ele guarda, no Rio de Janeiro, desde partituras originais, diplomas e fotos até objetos, como relógio, batuta, medalhas e documentos diversos que pertenceram a Alberto.

Na memória da professora aposentada da Universidade Estadual do Ceará, Elba Braga Ramalho, ainda estão vivas as imagens da filha Sigrid, do neto Sérgio e de outras autoridades do campo da música, que acataram o convite do então reitor Antônio Martins Filho para os festejos de celebração do centenário de nascimento do compositor, com uma exposição comemorativa no Salão Nobre da Universidade Federal do Ceará (UFC), em 1964.

“Pertenci ao Madrigal de UFC que mostrou ao Ceará algumas de suas obras, entre elas o Hino do Ceará, de sua autoria e do poeta Thomaz Lopes. Nepomuceno nos deixou um rico acervo de composições, e uma bela história de sua atuação como compositor, professor e cidadão de seu tempo”, reforça.

Nacionalismo

“Não tem pátria um povo que não canta em sua língua”, dizia Nepomuceno. Na visão de Elba, esse projeto dele de defesa da língua pátria, em detrimento da forte influência da ópera italiana no repertório de canções eruditas do Brasil à sua época, está correlacionado aos seus ideais políticos e estéticos. E, neste sentido, não se pode esquecer da fonte da tradição oral da qual ele bebeu em sua infância e juventude, entre Fortaleza e Recife, antes de mudar-se para o Rio de Janeiro ou de passar temporadas estudando em Roma e Berlim.

“Sabe-se dessa bagagem de memória juvenil por meio de entrevista à revista carioca A Época Teatral (1917), quando revela suas lembranças das melopeias dos aboiadores, e de algumas particularidades idiomáticas na melódica desses cantos. Verifica-se também, em seu cancioneiro, a ênfase que ele dá à palavra no contexto musical. Isso quer dizer que a palavra modela o canto. Esse mecanismo está muito presente, ainda hoje, nos improvisos poéticos dos cantadores nordestinos”, evidencia a professora.

É também sobre as influências desse período da vida de Nepomuceno que o pesquisador Gilmar de Carvalho reflete em algumas indagações. “Não se pode provar nada, mas pode-se levantar a hipótese de que o ‘Batuque, dança de negros’ (composição de 1887) poderia ter uma influência dos maracatus e dos congos que se apresentavam em Fortaleza. Como ficar insensível às danças dos negros, no patamar da Igreja do Rosário, a Virgem da devoção dos africanos?”, provoca.

Gilmar destaca ainda a mesma referência ao aboio citada pela professora Elba, lembrando que a manifestação estava incluída na narrativa de “O Sertanejo”, de José de Alencar, de 1875. Ainda sobre essa relação com os escritores, vale ressaltar que Nepomuceno escreveu a ópera “O Garatuja”, baseada na obra homônima do autor de “Iracema”; e musicou o poema “A Jangada”, de Juvenal Galeno, além de “Coração Triste”, de Machado de Assis.

Nesta perspectiva, Gilmar entrecruza as raízes culturais de Nepomuceno com os conhecimentos adquiridos pelo mesmo em suas temporadas na Europa, onde conheceu Debussy, Mahler, Busoni, Grieg, Casals, entre outros.

“Quem pode garantir ou contestar que ele tenha acompanhado alguma cantoria, tal como as citadas por seu tio Oliveira Paiva, em ‘Dona Guidinha do Poço’, escrito no século XIX, mas publicado apenas em 1952? Que tenha visto a dança do coco, citada por Juvenal Galeno nas  ‘Lendas e Canções Populares’, de 1865? A música da maturidade não faria uma ‘fusão’ disso tudo com o que ele estudou na Europa? E por que as canções em língua portuguesa? Não é uma questão de bairrismo, mas de compreender sua importância no contexto nacional e internacional do fim do XIX e começo do século XX”, defende Gilmar.

Neste sentido, os professores também reforçam a participação de Nepomuceno no grupo de defensores dos ideais progressistas engajados no movimento abolicionista e no fim da monarquia no Brasil. A influência vinha dos colegas  que estudavam na Escola do  Recife,  em Pernambuco, além dos residentes no Ceará, como João Brígido e João Cordeiro.

“O abolicionista regeu aqui nosso Concerto. O Republicano teve uma bolsa de estudos negada pelo Imperador. Essas retaliações são antigas e apenas se maquiam na atualidade”, conta Gilmar, em referência ao “Concerto da Abolição” que Nepomuceno regeu aos 20 anos na Assembleia Provincial, onde hoje funciona o Museu do Ceará, e às dificuldades que o compositor enfrentou por defender seus ideais.

Celebração

Marcou mais tarde essa trajetória a direção do Instituto Nacional de Música em duas ocasiões, numa das quais convidou para um concerto o violonista e compositor Catulo da Paixão Cearense. “Ele era aberto à aceitação da boa música, sem preconceito, seja ela culta ou popular. Consta também que Nepomuceno era amigo de Chiquinha Gonzaga. Portanto, sua proposta sempre foi tornar mais abrangente o acesso à fruição musical, sem fronteiras”, analisa a professora Elba Ramalho.

A pluralidade de contribuições do aguerrido cearense deverá chamar a atenção do público neste centenário de falecimento do maestro. O “Ano Alberto Nepomuceno”, que seria promovido pela Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (Secult-CE), acabou tendo seu planejamento indefinido devido à pandemia de Covid-19.

Mas a programação comemorativa acontecerá a partir desta segunda-feira (6), encabeçada pela comissão responsável pela efeméride, a qual escreverá uma série de textos semanais, publicados no site do Porto Iracema das Artes.

No roteiro de atividades, também consta a realização do III Simpósio de Regência e Interpretação Musical, no qual conferências envolvendo diversos músicos e pesquisadores debaterão aspectos da vida e obra do homenageado. A proposta é que as transmissões aconteçam pelo YouTube, de agosto a dezembro – acessíveis mediante inscrição – e que um livro seja organizado posteriormente englobando os assuntos discutidos.

Membro da comissão organizadora para festejar o centenário, a professora Inez Martins Gonçalves prepara, com o coral da Uece, gravações virtuais do Hino do Ceará.

“O hino foi uma encomenda do Barão de Studart à Nepomuceno com o objetivo de ser cantado nas festividades de comemoração do tricentenário da colonização dos portugueses no estado”, explica a docente.

A pesquisa que está sendo feita sobre essa composição, realizada pelas professoras Elba e Inez, será posteriormente apresentada oralmente e publicada como um artigo científico em congresso especializado. “Nosso intuito é registrar todas as informações musicológicas e de análise musical levantadas no estudo sobre essa criação”, situa Inez, lembrando com entusiasmo a ‘popularização’ que será possibilitada com a sanção da Lei Nº 17.201, que torna obrigatória a execução da composição também na abertura de todos os eventos esportivos realizados no Ceará.

Ainda a respeito das homenagens do centenário, a cantora e pesquisadora Anna Maria Kieffer, responsável por gravar as primeiras obras de Nepomuceno no CD-livro “1900 – A Virada do Século”, ao lado de canções de Francisco Braga e Chiquinha Gonzaga, e ainda o CD “A. Nepomuceno-Canções”, tendo ao piano Achille Picchi, organiza em 2020 uma remasterização deste segundo. “Pretendo lançar ainda este ano, se possível, em CD-livro”, adianta.

Ela defende o maestro como “o autor do mais importante conjunto de canções de câmara da História da música brasileira”. Lembra ainda o fato dele ter sido mestre de compositores fundamentais do Modernismo, como Glauco Velasquez, Luciano Gallet, Lorenzo Fernandez e Heitor Villa-Lobos.

Professor associado da Universidade Estadual do Ceará, Marcio Landi estende o raio de alcance do ofício de Nepomuceno ao destacar que o maestro segue influenciando novos aprendizes. “Mesmo passadas tantas gerações, ele serve de inspiração a todos os compositores e intérpretes cearenses”, observa. Ao mesmo tempo, sublinha a relevância de continuar promovendo olhares sobre a herança cultural deixada pelo músico.

“É preciso recriar suas obras por meio de concertos e celebrar seus ideais em sua biografia por meio de palestras, exposições, conferências online, blogs, artigos científicos ou entrevistas para o jornal”, conclui, certo da importância de todos os espaços.

Fonte: Diário do Nordeste

 

 

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