Um dos maiores nomes da música clássica, Cláudio Santoro tem obra celebrada

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Por muito tempo, músico teve genialidade relegada ao esquecimento, mas centenário de nascimento inspira discos e livros

Desde o início deste ano, o mundo da música de concerto no Brasil destaca a obra do amazonense Cláudio Santoro —que em 2019 completa cem anos de nascimento e 30 anos de morte.

Considerado por músicos e estudiosos um dos maiores gênios da música brasileira, no mesmo patamar de Villa-Lobos, Santoro viveu circunstâncias pessoais e históricas que deixaram sua obra à sombra, ou mesmo no esquecimento.

Sua filiação ao Partido Comunista, a passagem por estéticas diferentes em suas composições e até o grande volume de produção colaboraram para o esquecimento.

Entre as principais iniciativas do ano estiveram a montagem da versão final de sua única ópera, “Alma”, no Festival Amazonas, em maio, e a gravação de suas 14 sinfonias pela Filarmônica de Goiás, projeto que sairá em seis discos a partir de 2020 pela Naxos.

Na data do nascimento, dia 23 de novembro, virão à luz outras celebrações. São dois livros, um deles uma biografia com imagens inéditas, pela editora da Funarte, e um recital do barítono Paulo Szot e do pianista Nahim Marun, que gravaram as canções de Santoro para o Selo Sesc.

A gravadora lança no ano que vem a obra para violino e piano do compositor, com o filho Alessandro Santoro e o violinista Emmanuele Baldini —incluindo algumas inéditas.

O adjetivo inédito é repetido numerosas vezes no contexto da celebração em torno de Santoro. “São 30 mil páginas de música no acervo, mais de 500 obras”, contabiliza o filho do compositor, que desde 2000 se dedica à recuperação do material. “É um trabalho de formiguinha, sem apoio.”

Reconhecido ainda menino como prodígio ao violino, Santoro percorreu caminho singular. Sua obra costuma ser entendida por meio de quatro momentos —o dodecafonismo, na década de 1940, o abraço ao nacionalismo por determinação do realismo soviético, a volta ao experimentalismo e, finalmente, uma síntese.

“São etapas que se sucedem organicamente e o mostram sempre em busca de voz própria, uma voz intensa, passional”, diz João Luiz Sampaio, autor de “Cláudio Santoro: Cem Anos de Música”, que apresenta dezenas de fotografias inéditas, garimpadas pela produtora Glória Guerra nos arquivos da coreógrafa Gisèle Santoro, em Brasília.

“Boa parte do acervo está empilhada aqui”, conta a viúva. “E parte da obra está se perdendo, como as gravações eletroacústicas, sem partitura, em fita magnética. Os quadros dele estão pendurados nas minhas paredes. Tudo é muito difícil e caro.”

Foi Santoro quem transformou o alemão Hans Joachim Koellreutter (1915-2005) no grande professor de toda uma geração de compositores.

“Ele me pediu para ensinar as técnicas do dodecafonismo e aí fui estudar por conta própria”, contava Koellreutter. O grupo Música Viva, criado por Koellreuter, se tornou vanguarda musical a partir das aulas aos jovens como Santoro, Krieger e Guerra-Peixe. “E Santoro era um chefe da tribo, me educou politicamente”, lembra o compositor Edino Krieger. “Ele se filiou ao Partido Comunista pela busca de um ideal social. Mas nunca perdeu a dimensão da qualidade.”

O segundo livro saindo neste final de ano, “Humanismo, Marxismo e Música no Diário de Carlota Santoro”, de Cesar Buscacio e Virginia Buarque, acompanha a viagem do casal —Carlota foi sua primeira mulher— aos países da Cortina de Ferro em 1954 e 1955.

Professor da Universidade de Brasília, Santoro esteve entre os demitidos pela ditadura. Foi impedido em duas ocasiões de estudar nos Estados Unidos —na segunda vez, se recusou a renunciar às ideias comunistas em troca do visto—, formou-se na Europa e viveu na Alemanha entre 1970 a 1978.

“Ele tinha os equipamentos de que precisava, bom salário”, diz sua viúva. Decidiu voltar, contra a vontade da família, e enfrentou novas dificuldades.

A compositora Jocy de Oliveira, uma de suas principais intérpretes, o descreve em seu livro “Diálogo com Cartas” como “reclamão, em busca de sua utopia artística com temperamento combativo, mordaz, brigão e chorão, interessado somente no necessário para viver com dignidade e realizar o seu trabalho”. O filho confirma: “Meu pai era radical, não tinha meio-termo”.

O disco duplo “Jardim Noturno”, de Szot e Marun, serve como uma espécie de guia resumido dos caminhos de Santoro, com peças criadas em todas as fases, de 1948 a 1989. “Foi uma batalha com o material precário que, como muita coisa na música de concerto brasileira, precisa de revisão. O resultado ficou emocionante”, diz ele.

Szot vê nessas peças uma preciosidade mozartiana. “São tecnicamente muito difíceis, repletas de atmosfera muito brasileira e qualidade universal.” A dupla faz recital na Sala São Paulo em dezembro apresentando algumas dessas obras gravadas.

Na opinião do regente britânico Neil Thomson, que vem gravando a integral das sinfonias com a Filarmônica de Goiás, Santoro foi um autor fundamental.

“Se Villa-Lobos era um gênio da melodia, Santoro tinha um controle excepcional de suas ferramentas, fundamentado no intelecto e ao mesmo tempo com incrível intensidade. É comparável a Shostakovich.”

No dia 28 de março de 1989, Edino Krieger voltava de viagem e encontrou dois recados de Santoro na secretária eletrônica. “Edino, vou morrer, não aguento mais. Esse sujeito está me matando.” Santoro se referia aos conflitos com o pianista e maestro Marlos Nobre, então à frente da Fundação Cultural de Brasília, gestora do Teatro Nacional.

“Quando liguei de volta, recebi a notícia da morte durante o ensaio da Sinfônica do Teatro Nacional”, diz. No obituário publicado no jornal O Globo, o crítico Antonio Hernandez reproduzia a carta de Santoro escrita dois meses antes, de tom urgente e angustiado. “Não matei ninguém, não roubei ninguém, mas escrevi minha 14ª sinfonia”, escreveu. “O que para a nossa sociedade não é importante nem notícia!”

 “No final de 1988, meu pai viajou para a Alemanha com a ópera ‘Alma’ e a 14ª Sinfonia, para revisar essas obras”, lembra Alessandro. “Parece que ele já sabia que ia morrer.”

A última canção dos CDs de Szot e Marun é também sua última peça —“Wanderers Nachtlied”—, com texto de Goethe, que os intérpretes entendem como uma despedida. “Os pássaros estão calados na floresta/ você descansa também.”

O ESSENCIAL DO MÚSICO
Obra com Vinicius de Moraes
Ciclo de 13 canções já foi gravado por nomes como Aldo Baldin e Lilian Barreto
Música Concertante para Orquestra
Interpretação ao vivo de Jocy de Oliveira está no YouTube
 ‘Alma’
Única ópera do compositor, de 1985, baseada na primeira parte da trilogia 
‘Os Condenados’, de Oswald de Andrade
Música de câmara
Sonatas para piano (1ª e 2ª) saem no ano que vem em disco

Sinfonias
Orquestra Jovem do Estado grava a 9ª em 2020
PAULO SZOT E NAHIM MARUN
Quando Ter (3), às 20h30
Onde Sala São Paulo, pça. Julio Prestes, 16, tel. (11) 3367-9500
Preço De R$ 55 a R$ 127

HUMANISMO, MARXISMO E MÚSICA NO DIÁRIO DE CARLOTA SANTORO
Preço R$ 30 (153 págs)
Autor Cesar Buscacio e Virginia Buarque
Editora Ziló/Secretaria de Cultura do Estado do Amazonas

CLAUDIO SANTORO - CEM ANOS DE MÚSICA
Preço R$ 40 (112 págs)
Autor João Luiz Sampaio e Gloria Guerra
Editora Funarte
Fonte: Folha de São Paulo

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